Noite transiente, obras perenes: a consolação de Tempos Modernos e a permanência de Karl Marx
Escrito por Felipe V. Almeida
Os convidados terminaram suas falas e o intermediador, como de praxe, abriu o espaço para perguntas do público. Dois jovens pediram a palavra e as perguntas foram exatamente o que se esperaria de dois rapazes que dedicam uma noite de sábado à discussão de Karl Marx e, por conseguinte, devem ter ainda em carne viva o ímpeto de lidar com o que a Bianca Bonente, uma das três convidadas da mesa, se referiu como "o capital penetrando nas diferentes esferas da nossa vida, mediando nossas relações pessoais e afetivas… entrando nos poros onde pode penetrar… gerando sobretrabalho e adoecimentos físicos e psicológicos.” A primeira das perguntas foi sobre mídias sociais como potencial caminho revolucionário e a segunda pergunta quase se confundiu com um apelo, "Como manter a esperança diante das condições atuais?". Assim se encaminhava para o fim a mesa de debate em torno da obra "O capital" de Karl Marx. Sabendo para onde o público direcionoi as provocações daquele debate, irei ao começo daquela noite para retornar depois a esse ponto.
Mostra Kapital
Ao acaso, ou melhor, ao gosto do algoritmo esbarrei com a divulgação da Mostra Kapital, uma exibição de diversos filmes relacionados ao conflito de classes e à história do capitalismo promovida pela Editora Ubu para o lançamento de sua edição de "O Capital" de Karl Marx. Não pude ignorar a chance de rever "Tempos Modernos" (1936), dessa vez na tela grande. Haveria ainda a sessão de debate marcando o lançamento do livro. Não conhecia de antemão nenhum dos três convidados, porém era um evento de uma editora que sempre respeitou a inteligência de seus leitores, não precisava de muito mais que isso para me interessar.
Assistir àquele filme no cinema foi toda a beleza que eu esperava, um trabalho que em plena era do cinema sonoro ainda esbanjava toda a linguagem do cinema mudo com uma visão afiada e, talvez infelizmente, visionária acerca das relações de produção capitalista. Como falar de beleza em um filme que é do início ao fim a miséria dos explorados? Beleza porque a vida ainda pulsa à revelia do sistema econômico e assim como no filme os personagens se esgueiram, inventam e subvertem como podem as forças que se impõem sobre eles, na sala de cinema o público irrompia em gargalhadas e o clima era de cumplicidade com o aperreio e também com as felicidades criadas à margem daquele sistema de controle. Reconhecíamos naquelas vidas da telona a nossa maneira de sobreviver humanamente na desumanização, rimos daquele barraco caindo aos pedaços porque também temos muitas coisas aos pedaços em nossas vidas e, de alguma forma, temos que criar a felicidade entre esses escombros. Rir do telhado que acerta repetidamente a cabeça do trabalhador, gargalhar com os sonhos pueris de riqueza do casal é como rir um pouco de nós mesmos lembrando dos momentos nos quais agimos e pensamos e sobrevivemos como aqueles dois.
“Nenhum progresso veio para abreviar o trabalho do trabalhador… vira trabalho excedente, apropriado como mais-valor para o capital.”
Bianca Bonente abriu a mesa opondo o desenvolvimento tecnológico intenso que separa o mundo de 1936 e a nossa situação atual com a escalada das IAs e a proliferação das plataformas digitais de interação social e de trabalho. Nessa oposição sobressai aquilo que talvez Hilda Hilst incluiria em sua lista de coisas verdadeiramente obscenas, lá entre a miséria, a fome e as armas nucleares poderia entrar o salto tecnológico que não se reverteu em dignidade à classe trabalhadora e não saciou em nenhuma medida a sede de exploração humana. Pelo contrário, como a professora pontuou: "no regime de plataformas, a coerção deixa de ser visível" e ao ouvir isso noto que essa invisibilidade da coerção só é possível porque há uma combinação virulenta de condições em deterioração no trabalho assalariado tradicional e uma ideologia de produtividade que transforma cada humano hoje em seu próprio explorador, entretanto, explorador de si mesmo em prol dos mesmos beneficiários de sempre.
Pedro Lima, por outro lado, opôs “O Capital” ao pensamento corrente e defendeu que a inadequação desse livro, muito mais que suas conformidades com nossas preocupações atuais, é o que preserva sua potência. Forma do texto, de pensar e de luta, os três inadequados d'O Capital, de acordo ele.
“A atualidade do Capital tem a ver com a sua inadequação… ao pensamento hegemônico e ao contra-hegemônico.”
Um livro que versa sobre tecnicalidades sem se submeter às amarras do que chamaríamos de um texto acadêmico ou técnico, sem pudores de trazer literatura, metáforas, ironia e certo humor, apontando aquilo que Túlio Custódio, o terceiro convidado a falar naquela noite, corroborou depois, "a gente esquece que uma análise crítica não precisa ser feita com a cara carrancuda. Você pode rir. Marx se diverte na forma como a crítica é constituída."
Um livro que pensa diferente de nós. Se hoje os tais acadêmicos nas universidades produzem o tal do conhecimento especializado, atomizado e pormenorizado muitas vezes ao extremo da incompreensão, Marx seguiu um caminho diferente. Imprimiu em sua escrita ao longo de décadas uma multiplicidade de disciplinas tão simbioticamente entrelaçadas que esse texto monumental não se deixa ser categorizado.
Um livro que propõe como luta uma superação total, sem amarras ao passado, sem preocupações moralistas em relação aos "portadores de interesses" seja quem for e, ainda que Pedro Lima tenha feito com sucesso todos os esforços possíveis para evitar usar a palavra, me arrisco a incluir aqui, concordando com sua posição, mas pontuando às abertas o que eu supus subentendido: a luta em O Capital é universal, portanto inadequada, pela terceira vez, aos nossos tempos de intenso identitarismo.
“What’s wrong Nigga?
I thought you was keepin’ it gangsta?
I thought this what you wanted?
They say if you scared, go to church
But remember, he knows the Bible too.”
“O tempo de trabalho toma a dimensão do tempo de não-trabalho… ser ‘livre’ para definir horários vira ocupar cada vez mais o meu tempo com o trabalho.”
Foi com essa citação da musica "For sale?" de Kendrick Lamar que Túlio Custódio abriu sua fala, já num prelúdio do olhar afiado que não iria deixar passar nenhuma falsa consolação. Túlio apontou que na busca de condições de trabalho fora dos padrões de "Tempos modernos", ou seja, no anseio por uma nova forma de trabalho com flexibilidade de horários, autogerência do trabalhador e até algum alívio criativo, se organizou dentro do sistema capitalista uma solução integrada que promete atender às expectativas do proletariado, mas que na realidade se torna um pacto novo com resultados antigos, a exploração intensa e até intensificada pelas plataformas digitais. E ele foi além, propondo que à massa de trabalhadores do chão de fábrica agora se juntam aqueles que temos como criativos, trabalhadores intelectualizados e educados que com o advento das IA descobrem o "estranhamento" da alienação produtiva não se reconhecendo mais na criação daquilo que se qualificava até então como trabalho criativo por excelência. Nessa transfiguração do trabalho e seus novos contornos ele argumenta que "O capital" de Marx se coloca como um mapa da trajetória histórica do sistema capitalista. Um mapa cautelar que deveria ter nos prevenido de ilusões fáceis, porém pelos mesmos motivos que Marx, em mais uma de suas inadequações aos nossos tempos, dizia que a religião era o ópio do povo, vemos que o medo de possibilidades outras é maior do que o sacrifício em um altar familiar e vamos à igreja com medo e ignorando que o outro lado conhece muito bem o evangelho capitalista.
Aqui retorno ao início, ao sonho da revolução e à necessidade de esperança. O fato de que essas perguntas estão sempre à espreita diz muito sobre o público aberto a livros como O capital, mas, como a Bianca Imbiriba bem lembrou: em tempos de crise Marx é resgatado, não por ser um manual comunista, mas principalmente por conta de sua capacidade de desnudar o funcionamento de mecanismos que a história parece continuar provando serem inerentes à organização capitalista. Dito isso, as mudanças em curso levando ao aprofundamento digital e à rarefação do real trazem oportunidades que incutem nos otimistas a suspeita de uma possibilidade revolucionária que poderia ser incubada digitalmente e chocada nas ruas. Entretanto, Túlio Custódio foi cirúrgico ao mostrar certo ceticismo em relação às possibilidades vindas das redes sociais. Não podemos nos esquecer que após a Primavera Árabe ter tomado de assalto estruturas de poder até então intocáveis no Oriente Médio e em grande medida viabilizada pelas redes sociais, houve uma reorientação em que gradativamente o alcance e a liberdade dos usuários foram não só monetizados como limitados a formas muito estreitas de interação (likes, shares, followers) em contraste com os formatos de fóruns públicos que as primeiras redes sociais assumiram inicialmente. Que fique claro, o controle social das mídias sociais não está à disposição das massas e a possibilidade revolucionária reside nesse controle e não no sucesso dentro de estruturas digitais que servem única e exclusivamente a seus próprios interesses e aos de seus correligionários políticos. Suspeitar uma possibilidade revolucionária nas redes sociais é um acerto, mas não dentro das regras estabelecidas por essas empresas, não através daquilo que Eugeny Morozov chama pejorativamente de “debate digital”, a real possibilidade ainda passa pelo político e pelos meios de produção. É de meios de produção, esse termo surrado, que se trata quando falamos de servidores, cabos de internet intercontinentais, data centers e a hegemonia de países como EUA, Rússia e China dentro do ambiente digital.
Infelizmente para os rapazes e para todos nós houve pouca esperança naquela mesa, para roubar um pouco o linguajar de meus pares médicos, eram três convidados talvez excessivamente lúcidos e orientados no tempo e no espaço e que trabalham próximos demais de um paciente em estágios tardios para se arriscarem a oferecer curas, por isso ensaiaram no máximo uma oferta paliativa. Entretanto, fica o lembrete do Pedro Lima de que se o capitalismo cobriu o mundo de metástases talvez tenhamos alcançado a condição em que o fim do mundo tal como está coincidirá com o fim desse sistema econômico.
A esperança ainda é a de Chaplin em parte porque o capitalismo ainda é o mesmo de Tempos Modernos: habitar o que nos é possível, tomar, à força se preciso, aquilo de que sentimos fome e sermos irremediavelmente felizes à sombra de um eventual fim, revolucionariamente felizes, nós que ainda conseguimos rir de nosso infortúnio.