A promíscua relação entre educação alienante e religiões organizadas

Escrito por Felipe V. Almeida

"É preocupante ver um país que leva cada vez mais educação formal a seus cidadãos tendo que lidar com o crescimento dessas religiões de mercado."

 

Texto publicado originalmente em 17 de Novembro de 2015

É fácil ser um idiota e não se parecer com um. Basta uma conexão com a internet para acessar todo tipo de informação, especialmente para temas técnicos ou corriqueiros. Na mesa de bar dá até para regurgitar o que encontramos no Google em 5 segundos e ainda fingir que essa informação - apressada, mal avaliada e não verificada – aponta para alguma forma de intelectualidade pessoal, entretanto não é mais a informação que importa. Ter a informação agora é uma atividade para algoritmos, isso barateou as informações à beira da gratuidade ao passo que a enxurrada de conteúdo dificulta o entendimento e a formação de uma linha de raciocínio coerente que se baseie em dados realmente confiáveis.

O aumento do acesso à educação superior e de nível técnico no país é um feito digno dos maiores elogios, porém não é possível continuar sem questionar a qualidade desses cursos. Parte dos novos estudantes está em faculdades privadas usando financiamentos ou o aumento de renda dos últimos anos, embora esse último fator seja agora incerto. Mesmo com o aumento das cotas a faculdade pública não foi capaz de acolher a todos e essa demanda extra foi explorada pela iniciativa privada, nem sempre com os melhores objetivos.

No Brasil não existe nem mesmo o pudor entre as faculdades privadas. O mote das propagandas é o emprego certo, a aceitação do mercado e a carreira garantida. Esses formandos recebem a informação organizada e utilitária que é prezada no mercado, porém a massificação do ensino entrega também a alienação e a docilidade mental necessárias apenas em dois lugares: na empresa e na igreja.

Eduardo Cunha em culto no templo Vitória em Cristo.

Desde 2010 o IBGE aponta um crescimento da população evangélica no país, especialmente entre os jovens. Essa variação se dá por diversos fatores, inclusive pelo fato de a população evangélica ter maiores taxas de natalidade e também o enfraquecimento do catolicismo, apesar dos católicos ainda serem maioria. Aliada a outros fatores, a organização dessas igrejas em forma de negócio - com personalizações de acordo com o público alvo, eventos, templos e redes de telecomunicação - trouxe uma subcultura que preenche, ao menos à primeira vista, muitos dos vazios que todos nós encaramos ao lidar com o que Zygmunt Bauman chama de modernidade líquida.

É preocupante ver um país que leva cada vez mais educação formal a seus cidadãos tendo que lidar com o crescimento dessas religiões de mercado. A prática de líderes religiosos imporem seus absurdos através da política não é novidade, mas o obsceno no cenário brasileiro parece ganhar força através da exploração sistematizada das necessidades psicológicas de pessoas vulneráveis a determinados tipos de discursos religiosos. Se o Brasil educa mais e ainda é terreno fértil para fanáticos, resta avaliarmos o que tem sido feito da nossa educação. E aqui me obrigo a deixar de lado as faculdades federais e privadas mais bem estruturadas porque infelizmente são minoria e pouco ajudam na avaliação do que estou propondo.

Pastor Silas Malafaia e Toni Reis (dir.). Foto: Lula Marques/Fotos Públicas.

Em 2014 a  Maria Popova, que escreve no Brain Pickings, publicou um ensaio sobre a sabedoria na Era da Informação, onde ela propõe uma estrutura bastante simples para definir como funciona o que ela chamou de “escala do entendimento” sobre um assunto qualquer:

“Na base está um fragmento de informação, que só nos diz algum fato básico sobre o mundo. Acima disso está o conhecimento – o entendimento de como diferentes fragmentos de informação se encaixam para revelar alguma verdade sobre o mundo. O conhecimento se apoia em um ato de correlação e interpretação. No topo está a sabedoria, que possui um componente moral – é a aplicação de informação que vale a pena lembrar e conhecimento que importa para entender não apenas como o mundo funciona, mas também como deveria funcionar. E isso requer uma estrutura moral acerca do que deve e não deve importar, assim como um ideal do mundo em sua potencialidade máxima. ”

A sensação que tenho ao olhar para as estatísticas sobre religião e a forma como muita gente “diplomada” se comporta é que o ensino superior parece estar falhando ainda ao nível do conhecimento. Não é raro ver estudantes de medicina levando homeopatia a sério e jornalistas que mal sabem ler um artigo científico. O curso superior não pode ser um período de agregação cega de conteúdo. Para quem sai da faculdade e tem de lidar com um mundo de informações dissonantes e inesgotáveis é mais importante ter ferramentas para pensar e lidar intelectualmente com esse emaranhado de dados do que tê-los consigo.

As religiões organizadas ainda têm força nesse mundo caótico porque são as únicas instituições que possuem certezas absolutas, regras universais e uma sensação de pertencimento a algo que não seja o esforço diário que esmaga aos poucos cada um de nós. A necessidade é legítima, porém a forma como essas organizações tentam saná-la é inaceitável, em especial porque o objetivo principal da religião como se constrói hoje é o lucro e o poder.

"A tomada de consciência não resolve os problemas, mas é um passo essencial."

A melhor maneira de lidar com esse problema é esvaziar a massa de manobra e entregar nas mãos dessas pessoas as ferramentas necessárias para transitar no mundo de forma menos complacente. A tomada de consciência não resolve os problemas, mas é um passo essencial. A luta contra poderes econômicos e políticos tão concentrados quanto são no Brasil não depende de um grupo de iluminados, mas com o tempo a educação pode fazer a balança pender para um lado melhor. O problema é que a educação hoje serve ao mercado, cujos interesses coincidem com os de líderes religiosos. Não tanto porque as empresas tenham alguma afinidade inerente com a religião, mas porque o intuito e a intenção de grandes empresas e grandes igrejas é o mesmo: explorar certas vulnerabilidades e tentar suprir certas necessidades.

Há de se levar em conta: a universidade está presa em uma estrutura que, por natureza, restringe suas possibilidades. Se algo realmente revolucionário pudesse vir com facilidade das universidades, não haveriam tantas e muito menos o desinteresse quase geral com o que se produz lá. Porém o tipo de ensino entregue por algumas fábricas de diplomas é um desrespeito com todos que investem tempo e dinheiro buscando alguma capacitação pessoal. Como todo problema enraizado, a complexidade é enorme, mas é possível começar mostrando que essas comunidades confortáveis criadas por religiosos e alimentadas por empresários muitas vezes são imbecilizantes e as bolhas de segurança atuam como cortinas de fumaça, para encobrir aquilo que não convém ver.

 

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Felipe V. Almeida

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