Por que não assassinamos pessoas em ônibus lotados?
Escrito por Sidney Summers
São 18:00h e o suor se agarra à pele como uma segunda camada dela própria. Estamos encaixotados na mesma lata em movimento. Ele se move muito mais lentamente do que gostaríamos. Ombro contra ombro, seguimos nos esmagando. É possível sentir o fartum do hálito fermentado que escapa da boca de alguém e que se mistura ao odor de axilas indecifráveis. Cotovelos te lembram da materialidade corpórea, num rítmico golpear em suas costelas. Uma criança grita. O ônibus passa direto pelo seu ponto. Nesse momento, uma pergunta obscena se impõe à mente e ela parece muito lógica: por que não assassinamos as pessoas em um ônibus lotado?
Não pretendo exatamente uma apologia ao crime. Mas o que detém a manifestação desse monstro interior?
Magdalena Abakanowicz, Agora (2006)
Penso na novela gótica de Stevenson e na duplicidade do “eu”, em Dr. Jekyll e Mr. Hyde, o doutor civilizado e seu duplo, obscuro, selvagem, egoísta. Em 1886, Stevenson antecipa as conclusões das investigações freudianas, que surgiriam apenas nas primeiras décadas do século seguinte. Liberto das amarras morais, Dr. Jekyll libera o animalesco Mr. Hyde. Sem culpa, freios os códigos, ele quer e faz sem filtro, manifestação de um desejo bruto.
A esse impulso, instância inconsciente movida pelo princípio de prazer, Freud chamará ID. O ego, por sua vez, operando sob o princípio da realidade, seria o mediador entre os tiranos ID e superego, os valores morais internalizados, culpa e medo convertidos em ferramentas de controle.
No ônibus lotado vejo uma multidão de Dr. Jekylls, bem como infinitos Mr. Hydes ansiosos por escapar. Frustração e controle transbordam na mesma medida. Mas por que não encontramos nos ônibus lotados a maior incidência estatística de assassinatos?
Talvez Freud respondesse que pagaríamos com a repressão, por viver em sociedade. Essa é a conclusão presente no Mal-Estar na Civilização. O pacto civilizatório faz uma exigência, que castremos impulsos, que vistamos máscaras, que o Dr. Jekyll se manifeste e que se oculte o Mr. Hyde. O controle dos impulsos, em última instancia, é o que permite convivermos em sociedade. O ônibus lotado é um cenário em que a repressão se mostra em seu estado bruto, bem como o custo psíquico que ela impõe.
E se o pacto civilizatório extrapolasse o acordo simbólico, se esses valores internalizados pudessem ser monitorados pelo Estado? Esse é o pesadelo químico proposto por Karin Boyle em Kallocaina, onde Leo Kall desenvolve um soro capaz de nos fazer confessar aquilo que em nós há de mais íntimo. É um mundo onde o superego já não basta, onde o Mr. Hyde é detectado (e punido) enquanto potência, antes que se manifeste. A “instância repressora” é exteriorizada nessa distopia e tornada um mecanismo oficial de controle.
Kallocaina nos expõe mais, ela nos mostra as consequências de um regime totalitário, quando há apenas a transparência, sem negociações psíquicas. Quando há apenas vigilância, perde-se o mal-estar, mas com ela também se vai a psiquê / alma. O excesso de domesticação, se iguala ao aniquilamento. Não mais seria necessário um censor, um superego, quando este é manipulado quimicamente fora de nós mesmos. Quando o contrato tácito do pacto civilizatório deixa de ser firmado por normas internalizadas e o monstro interior deixa de ser contido pelo medo ou sublimação, sua neutralização apresenta uma falha do funcionamento social.
Francis Bacon's Study after Velázquez's Portrait of Pope Innocent X (1953)
Nas pinturas de Francis Bacon, pintor figurativo britânico, penso enxergar o interior desse ser-humano hipercivilizado e suprimido. São os papas em tronos deformados, figuras humanas distorcidas, detentos em cubículos transparentes ou presos em cadeiras. Eles clamam por algo que nunca vem. Seus rostos gritam, sem que as bocas possam se abrir. Em suas telas, não há a explosão da violência, mas o momento antes. É o impulso represado. É Mr. Hyde se debatendo na cela inescapável do Dr. Jekyll.
Nesse momento, os regimes totalitários ainda parecem nos assombrar como os pesadelos premonitórios que estão prestes a se realizarem. E talvez o ônibus lotado já mostre mais que o superego freudiano, mas a inconsciente transformação da violência em exaustão, o grito tornado silêncio. Morremos mais a cada dia – civilizados, educados, esmagados enquanto voltamos exaustos do trabalho.
Firmamos um pacto ambíguo, que nos protege enquanto nos mutila. O que nos impede de matar é aquilo que nos impede de sermos inteiros. A civilização exige que compartilhemos o suor alheio, que o grito histérico da criança ao lado seja parte dos nossos ouvidos, que a cotovelada na costela seja incorporada à respiração. Ela exige que sigamos, não por benevolência, mas por que se o Mr. Hyde saltasse dos nossos bolsos ou nossos olhos, nem ônibus, nem coisa alguma, poderia continuar seguindo.