Lolita e a adultização

Escrito por Maria Eduarda Amadeu

A denúncia de Felca

O vídeo do youtuber Felca, cujo conteúdo denuncia o modo como crianças e adolescentes são expostos online, já soma mais de 49 milhões de views em um mês. 

Amalia Ulman, Excellences & Perfections (2014)

O documentário explora diversos tipos de conteúdo produzido usando menores de idade, das crianças-coach à sexualização precoce. No entanto, um caso em específico destacou-se, gerando comoção nacional, a criação de projetos de lei e até prisões: o caso Hytalo Santos e a exposição da “Kamylinha”. 

O cerne da questão em torno das redes sociais da garota seriam os ambientes frequentados por ela enquanto menor de idade, nos quais havia bebidas alcoólicas, e a presença de conteúdo considerado inapropriado envolvendo-a. 

A responsabilização da vítima

Com a cobertura pela mídia, houve certa polarização do público: enquanto alguns pediram a prisão do responsável legal pela menina, outros alegaram que ela fazia tudo aquilo porque gostava. 

E essa segunda interpretação dos fatos, que tende a culpabilizar a vítima, lembrou-me perfeitamente de um

Barbara Kruger, Your gaze hits the side of my face (1981)

livro: Lolita, de Nabokov. Embora eu pudesse citar, aqui, diversos livros com narrador não-confiável, escolhi esse por tratar do tema da pedofilia, que retornou tão grandemente aos holofotes com a pauta da adultização. 

Lolita: atemporal

Se você ainda não leu esse clássico, publicado em 1955 e adaptado duas vezes para o cinema, essa pode ser a oportunidade que você aguardava. 

A obra retrata a vida de Humbert Humbert, um professor de literatura francesa que se sente atraído por uma garota de 12 anos. E, embora Dolores Hazel, a pré-adolescente 

em questão, seja a personagem mais memorável do romance, toda a história é contada pelo ponto de vista deturpado de Humbert. Por isso, o livro é recheado de momentos que dão a entender que a menina entendia o que se passava e, pior ainda, “provocava” sexualmente seu abusador! 

...às seis ela estava acordada e por volta das seis e quinze éramos tecnicamente amantes. Vou contar-lhes algo muito estranho: foi ela quem me seduziu
— Lolita, V. Nabokov

A escolha de adentrar uma mente tão doentia foi muito ousada, sobretudo para a sua época e, até hoje, faz com que muitos não tenham estômago para concluir a leitura.

Ler para entender

Da mesma forma que Humbert Humbert transfere à Dolores a responsabilidade pelo que ele infringiu a ela, hoje, a sociedade escolhe culpar Kamylinha pela superexposição que sofreu. Isso, por si só, evidencia que não a enxergamos como criança, mas como capaz de ser “provocadora” e consciente do que fazia. Assim, a leitura de Lolita pode ser uma ótima forma de colocar em perspectiva o tema da adultização e o modo como escolhemos expor menores de idade online. 

É preciso lembrar que pessoas como Humbert Humbert existem e podem estar a um scrollar de feed do vídeo do seu filho. 

A propósito, frequentemente me pergunto o que acontece depois com essas ninfetas. Neste mundo férreo, em que os trilhos de causa e efeito se cruzam e entrecruzam, será que o oculto espasmo que delas furtei não lhes teria afetado o futuro?
— Lolita, V. Nabokov

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Maria Eduarda Amadeu

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