Não Quero Ser Mulher

Escrito por Maria Gabriela Cardoso

Não quero ser mulher. Se preciso for, abdico minhas entranhas femininas; meu útero, trompas, ovários, vulva, vagina e tudo aquilo que a sociedade considera fazer parte de alguém do sexo feminino, e que de alguma maneira impõem-me rótulos desde o nascimento, pois nada disso me resume. Meus seios, recônditos nos bojos, não nasceram assim, eles eram livres. Por algum motivo que desconheço, minhas partes mais secretas, por mais cobertas que estejam, podem se tornar uma afronta aos outros e impedirem-me de transcender a forma humana e colocar-me no mundo de forma substancial, como ser próprio, indivíduo e singular. Não quero ser mulher, fazer parte deste grupo. Quero ser, apenas ser, pois sendo mulher, impeço-me de ser o que quero. Não quero ser homem, não me entendas mal. Também não desejo ser uma mulher transgressora, estar à margem do mundo ou à frente do tempo, até porque, o que quero é banal, é o que todas as mulheres querem. Sim, na generalização usada na quintessência da palavra: todas. Mas, então, o que desejo? — questiona-se —, pois respondo: ser energia, talvez até mesmo com um pouco de pele, mas energia, que se move com o vento e não pernas. Que vai e vem sem dar explicações, sem mostrar ou esconder. Quero passar despercebida, não por não ser interessante, mas por todos ao redor estarem acostumados a ver um exemplar como eu em tal situação. Sendo mulher, possuo energia, tanto física, quanto psicológica e até mesmo — dependendo da crença de alguns — espiritual. Porém, minha condição feminina obriga-me a despender toda minha capacidade energética para desempenhar esse papel e lidar com os reveses externos a que sou imposta.

Ana Mendieta — Silueta Series (1973–80)

Desde criança, todos os meus medos, preocupações e raivas concentravam-se majoritariamente nesse assunto. Minhas ações eram baseadas em esconder, camuflar, precipitar, ver maldade, precaver-se, ignorar gentilmente, ficar atenta, não dar conversa, não entrar, não aceitar, não deixar, não beber, não comer, comportar-se, não dar mole, mudar de calçada, não confiar, etc. E, em piores situações: sair correndo, gritar, pedir ajuda e ainda assim, mesmo seguindo à risca todos os mandamentos, não fui poupada. Todas as palavras usadas eram sempre variações do mesmo significado: “não se mostre, não seja e não queira”. Descobri, desde cedo, que, geralmente, o perigo não está tão distante quanto se pensa e uma voz mansa, um rosto simpático e até mesmo um gesto carinhoso podem esconder desejos perversos e a submissão e recatamento não protegem ninguém. Se assim fosse, os países mais severos nesse quesito, onde as mulheres praticamente não existem como seres humanos em suas próprias essências, não se mostram e passam a vida sem viver,  seriam paraísos femininos — o que na realidade é totalmente o contrário.

Nesse limbo existencial, poderia também ser átomo, pó, poeira, pedra, para assim, ter a versatilidade de tornar-me qualquer coisa: uma luz, alergias, castelos e ir e vir sem medo, deixando algumas partes minhas caírem porque, sim, porque quero que caíam, pois não vejo mais necessidade delas em mim, mas não porque me tiraram para diminuírem-me a um ser que deve seguir determinados ditos. E a única coisa que desejo parir é minha própria liberdade. Visto que, posso replicar-me, gerar cinco, sete, dez vidas, mas se antes disso não der luz a mim, ainda serei apenas uma coadjuvante da existência. Quero ser graça, risos escrachados, conversas grotescas, sentimentos não contidos, choros desesperados, gritos de raiva, passionalidade, irresponsabilidade, dominação, voz alta, erros, mandos, fúria, honra, pelos, pernas abertas, mamilos à mostra. Quero ser casual, aventureira, provocante, pudica, e ainda assim, no final de tudo, ter alguém para cuidar de mim ou dizer que, tudo bem, tenho o direito de agir assim, pois sou mulher, sou humana, possuo hormônios e nem sempre consigo controlá-los. Mesmo que eu não vá colocar tudo isso em prática, ainda assim os quero, quero ter debaixo do braço a certeza de que, caso queira, eu posso e não serei julgada por isso. Se ainda não tem um exemplar do que desejo ser, eu invento. Construo cada uma das partes a cada dia, mesmo que demore, não tem problema.

Cansei de ser julgada com base em outro ser. Não quero ser considerada complicada, complexa, pois eles estão julgando-me a partir de si mesmos, de seus próprios funcionamentos e naturezas. Obviamente serei considerada um mistério, pois todos que aproximam-se e conhecem-me, fazem isso apenas superficialmente, sem intenção de se aprofundar ou de fato compreender, mas sim, apenas identificar alguma parte onde possam infiltrar-se para tomarem-me para si. Desejo que minhas características não sejam consideradas fraquezas, uma vez que, a força não está apenas na ponta do punho cerrado, ela também está dentro do peito. Ser forte não é apenas saber gerar dor, mas também saber aguentá-la. Almejo ser livre para amar, entregando-me de corpo e alma a alguém que também irá ajudar-me a crescer sem esperar que eu abdique a vida para que ele cresça. Que sejamos fortes, apenas nos unindo um ao outro, sem tirar, apenas acrescentar, pois o verdadeiro amor não é egoísta, ele não tolhe, ele faz criar asas e abre o mundo. Amar não é sinônimo de felicidade, pois é a felicidade em si. É o que dá cor à vida e faz dela sentido na terra. Amor apenas cria, acrescenta, amplifica, jamais desfaz, destrói, prejudica. Não apenas o amor romântico, mas o amor ao trabalho, aos estudos, a si. Visto que este sentimento é nobre e poderoso, ele pode nos acordar, mas em suas piores facetas, também pode nos apagar.

Barbara Kruger — Your Body Is a Battleground (1989)

Não quero ser vista apenas de forma externa, ser julgada pelo meu peso, idade e tudo aquilo que faço seja diminuído caso meu corpo não agrade. Não desejo ser necessária apenas quando eu puder ser servil. Ser ouvida apenas quando querem me conquistar ou quando existe um tom masculino entre os sons legitimando o que digo, mas jamais quando meu timbre ressoa sozinho. Não quero cuidar de alguém. Reivindico ter liberdade para ter filhos, ou não tê-los e não ser julgada por isso, por saberem que sou muito mais e posso ir além. Não quero ter data de validade e em pouco tempo considerarem-me “fora do prazo” ou ter a palavra “sonho” como a mais difícil do dicionário a ser pronunciada. Não existir apenas quando alguém me considera bonita ou sensual, pois isso não é existir. Ninguém me deseja querendo saciar minhas vontades, mas sim, saciar suas próprias vontades. Muitos, inclusive, lamentam precisar de uma mulher para isso. O cabelo impecável uma hora fica oleoso. Os olhos pintados cansam e a maquiagem borra. A tinta das unhas descasca. Os pés doem nos saltos. Nada disso é poder. Quero liberdade da pele pra dentro e da pele pra fora, e não na pele em si, onde nada se agrega, onde o corpo modifica-se a cada manhã. Poder é ser de si e pisar no mundo tendo o seu lugar, sua independência, mas também, ter suas fragilidades pessoais respeitadas e não ser diminuída, excluída ou ignorada por isso.

Não quero que meu corpo seja usado conforme o que os outros desejam. Que os seios sejam considerados lindos cobertos com pintura ao desfilarmos na avenida durante o Carnaval, mas não pudermos amamentar em público por os considerarem impróprios. Não quero luxo, mas é mais fácil conquistar as coisas materiais mais caras e distantes do que meu próprio espaço no mundo. Almejo curtir, experimentar a vida, errar, quebrar estereótipos, aprender, ter experiência. Quero possibilidades, leveza de não pensar nas consequências de existir, de seguir o rumo que quero, de ser eu. Pensar apenas na própria coisa, na meta, na linha de chegada sem olhar para baixo e ver meu corpo arranhado, tocado e machucado pelos entraves que esbarrei pelo caminho. Não quero ser respeitada apenas tendo alguém ao meu lado, pois eu também sou alguém. Eu só quero existir.

Marina Abramović — Rhythm 0 (1974)

Já gostei de ser mulher, de fazer esse papel esdrúxulo que mal cabe a todas. Já senti-me tremendamente elogiada ao citarem o quanto eu era simpática, cortês, educada e prestativa, mas sozinha, percebia que apenas estavam parabenizando a minha obediência. Mas cansei-me, vi que queria ir além, e meus vestidos, adereços, modos, educação e delicadeza, impediam-me, pois tiravam minha passionalidade, minha força bruta, covardia e frieza tão necessárias para pôr-se no mundo competindo de igual para igual com tantos outros. A única força competitiva estimulada em mim desde cedo, foi criada e direcionada para ser usada contra outras mulheres. Isso é covardia! Pois, estamos no mesmo barco. Algumas em situações muito piores, claro, mas jamais estaremos satisfeitas, porque a luta travada há cinquenta, sessenta, cem anos ainda é necessária e basta um rápido apagão de luzes, para tudo ser jogado por água abaixo, pois não somos importantes para o mundo, mas sim, para quem cria o mundo.

Na menor expressão de ser, de existir e fazer parte, contidas num ato de emancipação, autonomia e independência, olhos estranhos intimidavam-me, palavras de censura eram-me jogadas. Percebi, logo cedo, que o menor ato livre, para muitos, significava um convite a uma batalha, pois como já mencionei poucas linhas acima, o corpo feminino em si não é uma afronta, ele é comum, trivial, banal, entretanto, a liberdade feminina é. Se o mesmo for usado conforme os desejos da própria mulher, a resposta da sociedade certamente será negativa. Assim, muitas vezes, recebia de volta, ofensas, atos invasivos e até mesmo agressivos. Qualquer ação considerada “imprópria” para minha condição de mulher, automaticamente rasgava esse papel, reduzindo-me a outro ser, desta vez, inumano. Podendo assim, ser agredida verbal, psicológica ou moralmente da maneira mais aviltante possível, deixando muito claro que a liberdade não combina com ser mulher, e o respeito não nasceu comigo, antes de tudo, eu precisaria ser merecedora dele agindo conforme as regras que esse rótulo dado no nascimento requer. E isso é um peso muito grande para carregar. 

Letícia Parente — Marca Registrada (1975)

Enquanto crescia, passei a orgulhar-me de não saber ser mulher. Já me classifiquei como fêmea, um tanto selvagem, eu sei, e mesmo que eu não tenha características animalescas tal como uma leoa, uma onça ou uma pantera, a palavra mulher define-me terrivelmente menos. Não ter liberdade gera raiva, corrói por dentro. Bicho preso não busca alimento, busca vítimas. Nasci tendo os limites escrachados diariamente nos olhos. Tudo era feio. Muitas palavras não combinavam com a boca de uma menina, era preciso se conter, pois, nada pior que se tornar uma mulher histérica, louca e desequilibrada — como gostavam de repetir quando qualquer mulher ao redor perdia a paciência. E meus modos não serviam apenas para tornarem-me uma pessoa mais agradável, argumentavam, eram também para me proteger, pois, o mundo lá fora nunca aceitou uma mulher existindo por si só, resolvendo seus próprios problemas, guiando sua vida, usando-se como deseja, focada em si, batalhando por suas próprias coisas, tanto intangíveis quanto materiais. Mulheres assim são consideradas egoístas, megeras, e não fortes e independentes, mas sim, problemáticas. 

Hoje em dia, a cada revolta, uma conversa muito perigosa é criada, e perguntam-me: “o que mais você deseja? Você não possui todos os direitos em mãos? Olhe essas leis! Olhe quanta campanha pelas ruas! Mulheres possuem direitos que nem mesmo os homens possuem!”. E por muitos anos acreditei nisso, não nego. Mas o mundo não se sustenta em palavras e papéis, o que vale é a prática. O dia a dia. O andar na rua. O desejo de terminar um relacionamento. De usar a roupa que bem entende. De pegar um carro de aplicativo para ir ao trabalho. De estar na profissão que quiser sendo remunerada conforme merece. De decidir sobre seu corpo, seus caminhos, suas metas e isso nenhum papel é capaz de resolver. Porque folhas não mexem nas raízes, nos alicerces e bases da sociedade. Só precisarei de um papel Legal quando estiver traumatizada, sangrando, machucada. E quase tão corriqueiro quanto uma notícia sobre o roubo de um celular ou de um carro, o roubo de uma vida feminina não gera alarde, não gera protestos, apenas um rápido lamentar sepulta a morte que jamais terá justiça. Quero a mudança antes do ato, antes do agir e pensar do algoz.  O respeito genuíno não lhe permite tocar, chamar, ultrapassar as barreiras do outro ser pelo simples motivo de você entender que ele possui seu espaço. Quando não há espaço, não há limites.

Não quero chorar pela liberdade não existente, quero romper, quebrar em meio às gotas de suor cada uma das barreiras. Isso é o único ponto positivo em ser mulher, poder romper barreiras e tabus que em momento algum são impostos ao caminho de um homem. Mas nem sempre estamos dispostas a isso, muitas nem mesmo foram ensinadas a ter energia para algum ato subversivo, outras utilizam suas energias para desempenhar o papel de mulher, sendo servil, obediente e submissa, mesmo dizendo que não, que são livres, ainda assim, estarão colocando-se em segundo plano: “quando terminar todas as tarefas da casa, cuidarei de mim e da minha liberdade”. Mas ao findar o dia, percebo que minhas forças foram vãs e nada corrompi, pois, a única coisa que consegui mudar foi a mim mesma, e o mundo lá fora continuou igual, intocável. Tudo que eu queria ser sendo mulher é não precisar abdicar o que quer que seja de mim ou desejar, lamuriosamente, ser qualquer outra coisa, senão, eu mesma.

Escrito por

Maria Gabriela Cardoso

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Capa: Kara Walker — A Subtlety or The Marvelous Sugar Baby, 2014

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